Precisamos falar sobre o Nordeste

*Artigo publicado originalmente no Jornal O Imparcial, na edição do dia 14 de Agosto

No início de maio, tive a oportunidade de comentar neste espaço sobre o agravamento dos desequilíbrios regionais no Brasil a partir de 2012 e, com muito mais força, a partir da grande tempestade recessiva de 2014 a 2016. Dois fatores se juntaram para produzir no Nordeste um impacto da recessão maior que na média nacional. A crise hídrica, que se agravou drasticamente nos anos de 2015 e 2016, produziu uma forte contração na produção agropecuária, com impactos severos na estrutura de ocupação, com destaque para Bahia, Maranhão, Ceará e Paraíba.

A crise fiscal-financeira do Governo Federal, por sua vez, deu origem a uma dramática compressão dos gastos federais, em suas várias modalidades, e com maior impacto sobre a ocupação e a estrutura produtiva dos Estados do Nordeste.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADc, realizada pelo IBGE) relativa ao 1º trimestre de 2018, quando comparada com o levantamento realizado no 1º trimestre de 2015, revela que houve queda de 1,7 milhão de pessoas na população ocupada nos Estados do Nordeste (queda acumulada de 7,6%), um montante superior ao 1,4 milhão de redução de pessoas ocupadas no Brasil (-1,6% de queda no período). No mesmo período, registraram-se abertura de ocupações na região Sudeste (+0,5%) e Centro-Oeste (+2,4%), enquanto que houve diminuição nos ocupados nas regiões Sul (-0,5%) e Norte (-0,4%). Nada comparado com o verdadeiro desastre ocupacional ocorrido no Nordeste.

Quando se analisa a estrutura de ocupações, não resta dúvidas que houve no período 2015 a 2018, em todo o Brasil, um intenso movimento de desestruturação do mercado de trabalho, com a a redução massiva do número de empregados com carteira assinada, e o forte aumento de ocupações precárias, a exemplo de empregados sem carteira assinada e os chamados conta-própria (em sua ampla maioria, compostos de trabalhadores autônomos no comércio, nos serviços pessoais e na agropecuária). No Nordeste, o desastre ocupacional se revelou na redução de 933 mil empregados com carteira assinada concomitantemente à redução de 662 mil contas-próprias. No primeiro caso, chama a atenção a redução de 19,8% do contingente de empregados com carteira assinada em Pernambuco (-247 mil pessoas), e de 16,7% na Bahia (-306 mil pessoas). O verdadeiro esfacelamento dos investimentos do PAC no setor de óleo e gás e as agruras enfrentadas pelo setor automobilístico e outras atividades da indústria de transformação explicam muito da destruição de ocupações urbanas, também em estados como Alagoas, Ceará e Rio Grande do Norte.

Já a redução do contingente de contas-próprias, fundamentalmente no setor rural, atingiu sobretudo os Estados do Maranhão (-320 mil pessoas) e Bahia (-279 mil), com reflexos também nos Estados de Alagoas (-72 mil), Sergipe (-49 mil) e Piauí (-37 mil). A redução do contingente de ocupados na agropecuária, fundamentalmente entre os pequenos agricultores familiares foi intensificada pela seca de 2015/16, mas relaciona-se também com mudanças demográficas e com o avanço não integrado do agronegócio, especialmente na região do chamado Matopiba. O mais preocupante da rápida queda da ocupação rural no Nordeste é que ela ocorre em um momento no qual se desenrola uma verdadeira “operação desmonte” nos gastos sociais, ao mesmo tempo em que se observa uma contração real nas transferências constitucionais (com impactos dramáticos nas finanças da ampla maioria dos municípios) e um verdadeiro colapso dos investimentos e financiamentos federais na região. Não é coincidência que o Nordeste Concentra 1,5 milhão dos cerca de 2,1 milhões de novos extremamente pobres que surgiram em 2016 e 2017.

Precisamos falar sobre o Nordeste. A profunda crise que se abateu sobre a Região mostra a necessidade de revermos o modelo de desenvolvimento que Carlos Américo Pacheco, ainda em meados dos anos 90, denominou de “fragmentação da nação” - a multiplicação de economias de enclaves com articulação direta com o mercado mundial e escassas articulações com o mercado regional. Precisamos, alternativamente, pensar em projetos de infraestrutura voltados para a integração do mercado regional, acelerando a circulação de mercadorias e pessoas.

É necessário priorizar-se políticas de emprego de cunho keynesiano que permitam enfrentar o brutal agravamento da pobreza rural, ainda mais com a cada vez mais provável aproximação de nova crise hídrica na região, que demanda um conjunto de obras e serviços destinados a ampliar a capacidade de retenção hídrica, principalmente no semiárido nordestino. Um esforço todo especial deve ser feito na reconstrução do padrão de financiamento dos investimentos públicos no Nordeste, profundamente abalado com o colapso financeiro da União. A busca de fontes alternativas de financiamento para os investimentos públicos estruturantes deve ser pensada como uma pauta prioritária, e depende de novas articulações políticas e técnico-administrativas para obter aval para novos empréstimos.

O Sistema BNB/ETENE/SUDENE ganha um relevo essencial no enfrentamento da crise atual. Os cerca de R$ 30 bilhões anuais do Fundo Constitucional do Nordeste - FNE, e ainda o Fundo de Desenvolvimento do Nordeste - FDNE (R$ 5,1 bilhões disponíveis ao final de 2017), representam uma parte importante do financiamento ao setor privado na região e há um grande espaço para melhorar a distribuição setorial da aplicação dos recursos, priorizando setores com elevada capacidade de geração de empregos, renda, inovações e criação de bases tributárias, a exemplo da agroindústria e do turismo A perspectiva de realizar-se uma ampla renegociação das dívidas com o PRONAF deve ter apoio dos governos estaduais e municipais na realização de uma “busca ativa” dos inadimplentes, na elaboração de projetos viáveis para os novos financiamentos, com destaque também para ações de assistência técnica rural e de apoio à comercialização.

Artigo do Prof. Dr. Felipe de Holanda